De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), das 24,6 milhões de pessoas que relataram ter alguma deficiência no Censo do ano de 2000, quase 150 mil declararam ser cegas. Em contrapartida, no Brasil existem apenas 70 cães-guias, o que significa que apenas 0,047% dos deficientes visuais tem a oportunidade de se tornar um utilizador.
A boa notícia é que se depender do governo paulista esta estatística deve mudar em breve. Foi assinado pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, na semana passada o decreto de lançamento do Programa Cão-Guia – uma iniciativa do governo estadual que, entre outras medidas, incluiu a construção na Universidade de São Paulo (USP) do Centro de Referência para o Cão-Guia.
Administrado em parceria com a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, o centro será responsável pela criação e treinamento dos cães-guia para pessoas com deficiência visual, além de também definir os parâmetros em relação ao uso de cão-guia e os métodos de treinamento do animal. A iniciativa visa entregar 30 cães-guia por ano, além da criação na FMVZ de uma linha de pesquisa nessa área para formar veterinários com capacitação em criação e treinamento desse tipo de animal.
O programa funcionará da seguinte forma: será selecionada uma família adotiva para cada filhote, que cuidará do cão por um ano, com todas as despesas fornecidas pelo Estado. Nesse período, os animais serão visitados periodicamente por membros do centro, que acompanharão seu desenvolvimento.
Passado o primeiro ano, os animais serão encaminhados ao centro de treinamento, onde passarão por adestramento específico para cães-guia de cegos, além de acompanhamento clínico feito por veterinários da FMVZ.
O período de treinamento terá duração de quatro a seis meses, dependendo da evolução do animal. Após o treinamento, os cães-guias serão encaminhados gratuitamente para pessoas com deficiência visual selecionadas pelo programa.
Projeto Pioneiro
Desde 2001, o projeto de cão-guia da Associação Brasiliense de Ações Humanitárias (ABA), proporciona aos deficientes visuais mais autonomia e independência. “Uma sociedade que respeita as diferenças dos cidadãos é aquela que permite aos deficientes, as mesmas oportunidades a uma vida dinâmica, participativa e produtiva, direitos inerentes à sua cidadania”, afirma Maria Lúcia Campos, coordenadora do projeto na ABA.
Com um plantel de 91 animais, entre cães-guia, cães em treinamento, reprodutores e filhotes em socialização, em um Centro de Treinamento localizado em Brasília (DF), o projeto é pioneiro no Brasil e conta com o apoio da Bayer HealthCare.
“O apoio ao projeto da ABA vai ao encontro da missão de todo o Grupo Bayer, de promover a qualidade de vida para a população em geral. No caso deste projeto, diversos medicamentos para o tratamento veterinário necessário para o bem-estar dos cães-guias são fornecidos pela companhia”, afirma Mariana Hagel, gerente de marketing da unidade de Pequenos Animais da Bayer Saúde Animal.
A ABA já treinou 33 animais para a função, sendo que, atualmente, 25 permanecem em atividade. “Normalmente, um cão-guia trabalha entre oito e dez anos, sendo, ao final deste período, aposentado de sua função. Com isso, outro cão-guia é selecionado e treinado de acordo com o perfil e as necessidades do utilizador”, comenta Maria Lúcia Campos.
Este é o caso de Silvo Gois de Alcântara, Regulador de Serviços Públicos, 37 anos, casado e pai de três filhos – duas meninas e um menino-, com idade entre 9 e 18 anos. Em 2002, ele recebeu o Labrador caramelo Zircon, que hoje, aos 11 anos, não exerce mais a função de cão-guia. “Ele se tornou um companheiro de estimação, mas, apesar de manter a sua destreza, foi aposentado por estar com a idade avançada”, afirma Silvo.
Para compensar a aposentadoria de Zircon, Silvo recebeu um novo cão-guia. Batizada como Naná, a cadela de cor preta, também da raça Labrador, tem quatro anos. “A Naná, a exemplo de Zircon, me possibilitou outra forma de caminhar e viver. Hoje tenho mais liberdade, me locomovo com mais velocidade e não me preocupo com os obstáculos, pois ela está treinada para me levar até a faixa de pedestres, para entrar em ônibus e ajudar a me localizar em um prédio, por exemplo”, descreve Silvo, que utiliza o meio de transporte público para ir ao trabalho e cumprir outras atividades.
Esta liberdade também é sentida por Alexandre Reis, músico, escritor e palestrante, que é utilizador de cão-guia desde 2007, quando adquiriu Hanna, uma labradora de cor chocolate, que o acompanha em muitos de seus trabalhos e nas atividades do dia a dia. “A Hanna é mais companheira do que a minha própria sombra, que desaparece no escuro, enquanto ela continua ao meu lado”, resume Alexandre, definindo assim a fidelidade canina de sua parceira.
Com temperamento dócil e alegre, Hanna sempre demonstra estar disposta para o trabalho. “Para Hanna, trabalhar é uma grande diversão. Quando estou me preparando para sair, ela percebe, e então passa a me rodear, à espera de que eu coloque nela o seu equipamento de trabalho. E, quando isto acontece, ela se posiciona ao meu lado, ficando de prontidão”, diz Alexandre. Preparada para enfrentar diversas situações, Hanna sempre encontra uma alternativa para contornar os obstáculos ao longo do caminho. Os cães-guia são treinados não apenas para obedecer aos comandos do utilizador, mas também para desobedecê-los, quando há algum risco pela frente. “Se estivermos diante de um buraco, por exemplo, e eu der o comando para a Hanna prosseguir, ela irá me desobedecer. Em situações como esta, preciso confiar nas decisões dela”, comenta Alexandre.
Todos os cães-guia da ABA recebem um treinamento especial, que dura entre seis meses e um ano. O projeto dá preferência para a raça Labrador, que se destaca por apresentar um bom caráter e capacidade de se adaptar a diversas situações. Os filhotes nascidos no Centro de Treinamento da ABA são selecionados aos dois meses e entregues às famílias voluntárias, que cuidarão deles até um ano de idade, recebendo auxílio para todas as despesas e sendo responsáveis pela socialização do animal. Ao completar um ano de idade, o cão retorna ao Centro de Treinamento e passa por uma rigorosa avaliação clínica e psicológica. Após a seleção de perfil para a função, o animal passa a ser treinado em diversos ambientes urbanos, para conhecer diferentes situações. Ao final de todo este processo, o cão-guia pode tornar-se apto para exercer a função e iniciar o treinamento com o deficiente visual, sendo que o curso de adaptação dura, em média, 25 dias.
Embora os cães-guia sejam treinados para a realidade urbana, no caso de Alexandre, a experiência mostra que eles podem também se sair muito bem em ambientes mais complexos. “Há algum tempo, estive com Hanna em São Thomé das Letras, cidade de Minas Gerais. Lá, caminhamos por estradas e trilhas no meio da mata, cachoeiras e grutas, lugares bem atípicos para um cão-guia. Essa experiência mostra que um cão-guia também pode ser um companheiro de aventuras. Mas, é importante observar que esse tipo de experiência exige muitos cuidados com a segurança”, finaliza Alexandre.
Fonte: Epoca São Paulo
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