Jorge Pereira
É muito fácil falar dos benefícios que os animais terapeutas nos trazem, pois eles são muito especiais. Todo o processo de trabalho com animais, para utilização em terapias, sempre é tema de estudos e reportagens. Mas só quem vive diariamente a rotina desse importante e gratificante trabalho pode contar. Os resultados dos tratamentos, melhor forma de selecionar um cão terapeuta, técnicas de treinamento para animais e voluntários são largamente documentados e discutidos. Mas acontecem coisas que ninguém consegue explicar. Vou contar uma das inúmeras situações que já aconteceram comigo.
Certa vez, estava numa clínica para mais um dia de sessão, onde trabalhava com crianças com síndrome de Down, hidrocefalia e paralisia cerebral. Quando chego à clínica o clima muda imediatamente, todos ficam muito felizes com a chegada dos cães. A alegria é contagiante: desde o pessoal da recepção, a turma da limpeza e as crianças na sala de espera fazem a maior farra.
A rotina começa com a seleção dos pacientes que vou trabalhar, processo que acontece sempre com o acompanhamento de um médico. Depois de avaliar a compatibilidade do cão com o paciente, para não acontecer nenhuma rejeição, tais como: o paciente se assustar com o tamanho do cão ou, por exemplo, deixar um cão muito alegre e receptivo com uma pessoa que tenha pouco movimento, entre outras.
Nesse dia em especial estava com um cão de porte médio/grande, para trabalhar com crianças que já estavam acostumadas com animais. Quando comecei a preencher as fichas, mandei o cão sentar e ficar ao meu lado enquanto escrevia. Sabendo que ele era extremamente obediente, dei o comando e o deixei à vontade. Ao terminar, olhei para o lado e vi que o cão havia sumido, mas, como todos os funcionários sempre ficavam paparicando o peludo, achei que alguém passou e o pegou para fazer uma brincadeira comigo.
Chamei por ele nas salas da recepção, mas sem sucesso. Comecei a me preocupar quando perguntei sobre o peludo para as pessoas que tinham mais contato com ele. A resposta era negativa sobre seu paradeiro. Comecei a procurá-lo nos quartos dos pacientes. Fiquei mais preocupado ainda, pois a clínica tinha mais de 20 quartos, em sua grande maioria com pacientes adultos que não tinham contato com os cães.
Depois de procurar por vários desses quartos encontrei-me com uma faxineira nos corredores. Antes que eu perguntasse qualquer coisa ela já foi me falando: “Se está procurando um cachorrão, ele entrou no quarto 17″. Gelei, afinal é difícil para alguém em uma clínica de reabilitação esperar uma visita de um cachorro grande, quanto mais adivinhar que é um cão terapeuta. Fui em direção ao quarto 17 e, para minha surpresa, o fujão estava ao lado de um senhor que estava deitado e dormindo. O danado subiu na escada que auxilia o paciente a subir e descer da cama e descaradamente colocou a cabeça no peito dele, como se estivesse cuidando dele.
Olhei para ver se tinha alguém no quarto para me desculpar, mas o paciente estava sozinho. Chamei-o baixinho e, apertando os dentes, mostrei que estava muito descontente com a fuga dele, mas, para minha surpresa, quando o chamei o danado ao invés de me atender imediatamente, como sempre fez, enterrou o focinho nas mãos do paciente e fechou os olhos tentando me ignorar. Entrei no quarto nas pontas dos pés para não acordar o paciente e ter que enfrentar uma bela chamada de atenção pela diretora da clínica. Fui em direção do peludo, peguei a guia para poder retirá-lo do quarto e voltei de fininho para as seções que estavam marcadas.
Dois dias se passaram. Recebi uma ligação da clínica. A secretária pediu que esperasse porque a diretora e a proprietária da clínica queriam falar comigo. Minhas pernas ficaram bambas, afinal naquela época era muito difícil conseguir implantar um projeto como esse, e qualquer falha poderia pôr tudo a perder. Quando atendi a ligação, tentei ser descontraído e não falar sobre o assunto, mas ela começou me perguntando se havia acontecido algum incidente com algum cachorro na clínica. Logo, comecei a me desculpar e a “chorar as pitangas” dizendo que nunca mais isso iria acontecer. Sem falar muito, ela disse que queria minha presença imediata na clínica.
Fui direto para lá. Fiquei muito nervoso. Quando cheguei à clínica, fui direto para a sala da diretora, onde fui informado de que todos me esperavam, inclusive os familiares do paciente. Cumprimentei a todos e comecei a ladainha das desculpas, que foi interrompida pela proprietária da clínica. Ela me disse que o que tinha acontecido foi grave, mas que tinha uma coisa para me falar. Após apresentar a mãe e a irmã do paciente à diretora começou a contar a história dele e o que ele estava fazendo na clínica. Para meu espanto, me foi dito que ele não estava dormindo, mas sim estava na clínica para sessões de fisioterapia por conta de um AVC que havia sofrido. O diagnóstico era o de que ele viveria de forma totalmente vegetativa, por isso seus músculos estavam atrofiando, pelo que necessitava de exercícios na clínica.
Novamente, comecei a falar sobre o cão e o quanto ele trabalha com crianças e que não representava perigo para ninguém. Fiz isso porque temia ter meu projeto cortado, ou até mesmo um processo. Depois disso, me disseram que nesse dia algo extraordinário aconteceu: o moço que sofreu AVC estava há seis meses naquela situação e no dia em que aconteceu a fuga do cão e a invasão do seu quarto no final da tarde, o paciente começou a ter reações e saiu do coma. Dois dias depois do ocorrido ele já havia conseguido se comunicar através de mímica. Como início da recuperação o paciente perguntou onde estava o cachorro… havia ficado com ele.
O rapaz que tinha uma previsão de vida vegetativa saiu do coma, sua irmã e sua mãe estavam lá justamente para pedir que ele fosse inserido no programa com cães. A solicitação dos familiares foi atendida prontamente. Após um ano de tratamento, juntamente com o cachorro fujão, conseguiu ele uma série de avanços no tratamento, inclusive o retorno da fala e de movimento em membros inferiores e superiores. Ele já anda, com auxílio de pessoas, o que é um grande feito para quem teria uma vida vegetativa.
Algumas perguntas ainda precisam de respostas: com tantos outros quartos, como o cachorro sabia que era justamente aquele paciente que precisava de estímulos?
Como, mesmo em coma, o rapaz conseguiu lembrar que o cachorro esteve no quarto com ele? Depois que ele voltou a falar, eu perguntei como sabia que o cão esteve no quarto dele. A resposta que recebi foi: “Não sei como, mas eu simplesmente sabia”.
Mesmo com tantos artigos sobre animais que ajudam pessoas, poucos tentam explicar o sexto sentido dos animais. Quanto mais nos deparamos com isso, mais perguntas surgem.
Essa é uma das inúmeras histórias que eu vivi relacionadas a esse trabalho. Acredito que meus colegas que também trabalham com TAA devem ter muitas outras parecidas. Temos que divulgá-las e explorar muito mais esse universo que estamos arranhando. É preciso mostrar a todos que nossas ligações com os animais é algo que não deve ser negligenciado e que nessa corrente os elos entre pets e humanos são muito mais sólidos do que imaginamos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário