sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Toxina que alivia


Pesquisa da UFMG mostra que componente do veneno de aranha nativa do Brasil pode ser usado para tratar dores causadas pelo câncer. A substância tem alto poder analgésico e causa poucos efeitos colaterais.
Por: Yuri Hutflesz
O veneno da ‘P. nigriventer’ é neurotóxico e pode causar dificuldade respiratória, vômito, tontura, entre outros sintomas. Como não tecem teias, essas aranhas causam grande número de acidentes. (foto: Jarekt/ Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)
Aranhas armadeiras não são exatamente o tipo de animal que se gostaria de ter por perto. Além de muito agressivasseu veneno é considerado o mais potente entre os aracnídeos. Paradoxalmente, uma espécie do grupo libera uma toxina analgésica que pode amenizar o sofrimento de pacientes com câncer. Testes com camundongos e ratos sugerem que a substância funciona melhor do que os fármacos utilizados atualmente para esse fim.
A espécie em questão é a Phoneutria nigriventer, tipo de armadeira presente em todo o Brasil e outras regiões da América do Sul e que contém o peptídeo Phα1β (‘Ph alfa 1beta’) em seu poderoso veneno. Além de ter se mostrado eficaz no combate às dores decorrentes do câncer, o uso da toxina nos animais apresentou muito menos efeitos colaterais que outros analgésicos administrados na mesma situação.
De acordo com a farmacêutica Flávia Rigo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a substância ainda tem a vantagem de não causar tolerância nos pacientes. “Isso ocorre quando, depois de várias vezes administrado, um fármaco passa a ter menos efeito no organismo, o que implica no aumento constante das doses”, explica.
Para testar as propriedades analgésicas da toxina, Rigo separou os animais em dois grupos. O primeiro, formado por camundongos, recebeu células de melanoma nas patas direitas e foi tratado com morfina. O segundo grupo, composto por ratos, foi apenas submetido à quimioterapia, com o medicamento paclitaxel, sem ter desenvolvido câncer.
A substância eliminou totalmente tanto a dor causada diretamente pelo tumor, quanto a decorrente da quimioterapia
A toxina foi administrada quando os animais do primeiro grupo começaram a desenvolver tolerância ao analgésico e os do segundo apresentaram dores agudas, decorrentes do tratamento. O composto foi injetado por via intratecal, diretamente na medula espinhal.
Segundo a farmacêutica, a substância eliminou totalmente tanto a dor causada diretamente pelo tumor, quanto a decorrente da quimioterapia. A analgesia durou seis horas, duas a mais que a provocada pela morfina, por exemplo.
De acordo com Rigo, o único efeito colateral observado foi uma leve sensibilidade na pele. Já a ziconotida, utilizada no estudo para efeitos comparativos, causou distúrbios motores e sonolência nos animais. Esse peptídeo, derivado do veneno do caracolConnus magus, é usado atualmente no tratamento de pacientes com câncer ou Aids tolerantes à morfina.

Cortando a comunicação

As dores provocadas pelo câncer têm origens diversas, estando relacionadas, principalmente, à compressão de nervos e vasos pelo tumor e à agressividade das terapias.
Trabalhos anteriores já haviam mostrado que a toxina bloqueia canais de cálcio presentes nas células, impedindo a liberação de neurotransmissores. Esses canais têm papel fundamental na condução de estímulos neurológicos até o sistema nervoso central. Ao interromper esse processo, a Phα1β faz com que o cérebro não ‘fique sabendo’ que há algo errado e, consequentemente, não envie o estímulo de dor para o local afetado.
Apesar dos resultados positivos dos testes, não seria possível utilizar somente a toxina no tratamento das dores do câncer. Por ser um peptídeo – tipo de molécula que sofre degradação excessiva no estômago e não é bem absorvida pelo intestino –, a Phα1β precisaria ser aplicada por via intratecal. E por se tratar de uma injeção diretamente na medula, a aplicação recorrente por tempo prolongado seria inviável.
No entanto, foi observado durante o estudo que os animais resistentes à morfina que recebiam doses da Phα1β tiveram essa tolerância diminuída. Isso possibilitaria um tratamento alternado, em que a toxina seria introduzida apenas pontualmente.
Outro problema é a necessidade de sintetizar a substância em laboratório para a realização dos testes com seres humanos e para o desenvolvimento de medicamento. Além de a P. nigriventer ser muito difícil de capturar e criar em cativeiro, a quantidade de veneno obtido de cada aranha é muito pequena. “O processo para desenvolver a Phα1β é muito complexo, já que é preciso reproduzir todas as ligações do peptídeo em uma estrutura tridimensional”, afirma Rigo.
Mas, de acordo com a pesquisadora, existem pesquisas nesse sentido sendo conduzidas, visto que em 2008 outros estudos já haviam comprovado a eficácia do composto no tratamento de dores neuropáticas e associadas a inflamações.
Já a próxima etapa do estudo de Rigo será observar a ação da toxina da armadeira em animais com dor associada à Aids.

Yuri Hutflesz
Ciência Hoje On-line

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